Nota de Repúdio

Nota de Repúdio

Nós, pesquisadoras e pesquisadores do Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo (CEstA/USP), que há anos desenvolvemos pesquisas e projetos em parceria com coletivos indígenas por todo o país, e membros do Fórum sobre Violações de Direitos dos Povos Indígenas e do SAJU Tuíra (Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da USP), também apoiadores dos povos indígenas, vimos por meio desta nota pública manifestar nosso forte repúdio e indignação às afirmações do presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) Antônio Costa, em entrevista à BBC Brasil no dia 06/04/2017, intitulada “Índios não podem ‘ficar parados no tempo’, diz novo chefe da Funai” (http://www.bbc.com/portuguese/brasil-39510285).

Não é a primeira vez que o atual presidente do órgão indigenista oficial manifesta-se à imprensa brasileira com leituras equivocadas sobre a realidade dos povos indígenas no Brasil e os direitos originários garantidos a eles pela Constituição Federal de 1988. Não se tratam, no entanto, de simples equívocos, mas efetivamente do retorno da ideologia assimilacionista à pauta do indigenismo oficial. "Parada no tempo" é esta visão assimilacionista e integracionista, há muito superada pela legislação brasileira. Afirmações como essa evidenciam um vertiginoso desconhecimento dos modos de existência indígena e sobretudo, revelam a atitude equivocada de quem, ao lhes negar a capacidade de transformações históricas, lhes nega um futuro em seus próprios termos.

É do conhecimento de todas e todos brasileiros - ou ao menos deveria ser, e temos batalhado para que seja - que os mais de 250 povos indígenas existentes no país, falantes de mais de 180 línguas diferentes, possuem seus modos próprios de existência, suas formas de produção de alimentos, seus próprios sistemas de conhecimento e que a perpetuação desses modos - e portanto, de continuarem sendo quem são - é garantida a eles pela Carta Magna e outros dispositivos dos quais o Brasil é signatário.

É um equívoco afirmar que os povos indígenas devem "se inserir no sistema produtivo nacional", posto que os múltiplos modos de produção indígenas envolvem, há séculos, conhecimentos exímios de técnicas de plantio e cuidados com a terra,  manejo das sementes, técnicas de caça e produção extrativista, que se enriquece através da troca de produtos e da circulação de conhecimentos. Seus sistemas produtivos, que muitas vezes também contribuem para redes de abastecimento regionais, são amplamente responsáveis por sua segurança alimentar, pela conservação da biodiversidade e pelo manejo das espécies. Nesse sentido, não faz sentido contrapor comunidades que garantem sua "subsistência" àquelas que supostamente almejam alcançar uma "produção" destinada ao mercado capitalista. O que os índios, em todos os estados do país, demandam, é que possam continuar produzindo para seu bem-viver, que é injusto rebaixar à ideia de "sobrevivência". Antes, é necessário reconhecer que a constituição e manutenção das florestas devem muito à atuação dos povos indígenas. Sua ação se contrapõe aos efeitos devastadores das monoculturas que avançam promovendo a degradação do solo, a poluição das águas, a desregulação do clima e do regime de chuvas, o uso excessivo de agrotóxicos e a redução da diversidade por todo o Brasil. O que os povos indígenas produzem é comida, e não commodities. O papel da Funai e do governo brasileiro não é "dar" aos índios condições de produzir, mas garantir que suas condições de produção, sobretudo suas terras, sejam preservadas de invasões e práticas ecocidas e etnocidas, e que as medidas de reparação dos males causados há séculos sejam efetivadas, respeitando sua autonomia conforme garante o Decreto Presidencial 5.051 de 2004 que promulga a Convenção nº 169 da OIT. Cabe relembrar que o § 2º do Art. 231 da Constituição Federal de 1988 assegura a posse permanente e o usufruto exclusivo das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas. Esta autonomia e o usufruto exclusivo são considerados Direitos Fundamentais invioláveis.

Qualquer política de sustentabilidade deve, portanto, atentar para os modos de produção indígenas e suas noções específicas de bem viver. Nesse sentido, a crítica ao "modelo de assistencialismo" feita por Antônio Costa é ao mesmo tempo equivocada e paradoxal. Se cabe ao órgão indigenista atentar para os impactos causados por programas de transferência de renda e outras formas de monetarização das comunidades, certamente a solução não se faz pela proletarização dos coletivos indígenas e sua redução a trabalhadores rurais em cadeias produtivas nacionais. É justamente o esbulho de terras e a impossibilidade de manutenção de seus modos de vida que criam situações de vulnerabilidade. O discurso de Antônio Costa é alinhado àqueles que defendem a PEC 187/2016 que, sob o pretexto de "viabilizar a interação" das comunidades indígenas com a sociedade envolvente, busca autorizar a exploração agropecuária em Terras Indígenas, aumentando a pressão sobre essas terras e os riscos ao usufruto exclusivo. Contra esta PEC, a Procuradoria Geral da República emitiu a Nota Técnica Nº 02/6ªCCR/MPF, que pode ser consultada no endereço <http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/Documento_Administrativo_PGR00090820_2017.pdf>.

Ao se referir aos índios Guarani como "coletores" que necessitam de "tecnologias para que eles possam plantar e ser cultivadores", Antônio Costa demonstra um total desconhecimento da realidade desses povos, cujas experiências de cultivo agrícola advém de tradições milenares, e que mais recentemente somam-se a projetos agroflorestais que prevêm o intercâmbio de conhecimentos, como, por exemplo, entre aldeias das Terras Indígenas Jaraguá e Tenondé Porã, na cidade de São Paulo, com a Tekoa Aguapeú em Mongaguá (SP). O mesmo ocorre em projetos agroecológicos de processamento de mandioca implementados por índios Terena, na Terra Indígena Araribá (Bauru/SP), compartilhados com índios Guarani Kaiowá e Terena do Mato Grosso do Sul. 

Outro ponto a esclarecer é que a busca de formação e conhecimentos universitários pelos indígenas não visa necessária ou exclusivamente sua inserção competitiva no mercado de trabalho, e sim a aquisição de saberes que permitam desenvolver ferramentas que beneficiem suas comunidades, bem como um diálogo com a sociedade nacional, que insiste em tratá-los como desiguais. A "independência" preconizada pelo presidente da Funai não advirá da mercantilização dos recursos das Terras Indígenas e sua "participação nos produtos", que não passa de uma designação nova para as velhas práticas de exploração predatória, com compensações ínfimas imediatas e efeitos terríveis a longo prazo para as comunidades. A independência se faz pela garantia de dispositivos de autodeterminação nos assuntos concernentes às comunidades, a partir do que é determinado pela Constituição - que afirma seus direitos originários - e tratados internacionais como a Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário e cujas determinações tem violado constantemente.

As Terras Indígenas são constatadamente hoje as áreas mais importante para a conservação ambiental. Segundo dados do Prodes/INPE de 2013, o desmatamento acumulado em toda a Amazônia Legal era de 22,8%; desse total, apenas 1,9% era sobre áreas florestadas de Terras Indígenas. Os grandes latifúndios com produção de monoculturas de soja, milho, cana, em larga escala, no entanto, ocupam cerca de 75% do território da região Centro-Oeste, sendo o Estado do Mato Grosso do Sul o campeão nacional dos latifúndios, que representam 83% dos terrenos privados do estado, segundo Atlas Agropecuário, lançado pela Imaflora em parceria com o GeoLab, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP).

Outro destaque é o modo como o Presidente da Funai justifica sua adesão à exploração mineral em Terras Indígenas. Alega que a demora na regularização de atividades de mineradoras em Terras Indígenas é responsável pelas invasões por parte de garimpeiros. Ora, estudiosos da exploração mineral na Amazônia, sabem há décadas que garimpeiros antecedem as empresas, descobrindo e testando nichos que são depois requeridos por elas. E a instalação dessas empresas não elimina o movimento de garimpeiros, que seguem buscando novos filões. A regulamentação da atividade garimpeira  e sua fiscalização não deve ser realizada às custas dos índios. Supor que "uma participação no produto" possa "amenizar os problemas sociais" das comunidades é leviano. O que se constata é que a exploração garimpeira em Terras Indígenas gerou significativos impactos socioambientais, que enfraqueceram os modos de produção indígenas, bem como sua organização social e política, criando-se uma forte estratificação social, baseada no acesso desigual à renda,oriunda de trabalhos episódicos no garimpo, ou do acesso a contrapartidas pagas pelos garimpeiros a certas lideranças. Outras consequências fartamente documentadas foram a proliferação de doenças e o aumento da violência nas comunidades. Os efeitos da exploração mineral por empresas, que é apresentada pelo presidente da Funai como uma solução, porque pagará royalties, não deverão ser menores, muito pelo contrário.

Mas é sobretudo preocupante a declaração do Presidente da Funai, alegando que as comunidades indígenas não precisam ser consultadas a respeito de empreendimentos minerais em suas terras, sob pretexto de que são terras da União. Evidencia sua adesão à ofensiva legislativa contra os direitos indígenas, que não só busca limitar direitos territoriais indígenas, como pretende violar o direito à consulta. Entre outros projetos de lei que procuram violar  essa consulta está o Projeto de Lei 1610/1996, que regulamenta a mineração em Terras Indígenas. Mais uma evidência de que o Estado Brasileiro - agora no âmbito da instituição responsável pela política indigenista - segue desrespeitando os compromissos assumidos internacionalmente, de forma voluntária, quando ratificou a Convenção 169 da OIT. É necessário frisar que, em contrapartida, um número crescente de comunidades indígenas tem elaborado protocolos próprios de consulta e lutado com afinco para que sejam respeitados. Uma instituição como a Funai deve apoiar esse movimento de elaboração de protocolos, ao invés de apoiar aqueles que utilizam subterfúgios judiciais para evitar a aplicação do direito à consulta.    

De toda forma, temos testemunhado inúmeros casos na história recente de megaprojetos de alto impacto em Terras Indígenas, nos quais a consulta prévia não foi realizada, laudos antropológicos e estudos como o EIA-Rima não foram feitos ou foram desconsiderados e as medidas condicionantes e compensatórias não foram cumpridas. Um dos exemplos mais trágicos é a construção da UHE Belo Monte.

Não menos consternante é a posição do presidente da Funai com relação às denúncias de condenações de práticas indígenas por missionários fundamentalistas evangélicos. Tais denúncias não são nada "insignificantes", como ele afirmou, uma vez que violam frontalmente o princípio da autodeterminação dos povos indígenas e o direito à manutenção de suas "crenças e costumes", como reza a Constituição de 1988.

Antônio Costa defendeu que "Todas as instituições religiosas que seguem a palavra de Deus têm de buscar pessoas que venham a conhecer a palavra de Deus.", afirmando com isso que não se opõe à pregação religiosa nas aldeias. Ao mesmo tempo, disse que: "A ideologia é muito perigosa. Ela deve ser defendida nas ruas, não dentro das instituições". Essa atitude ambígua é condizente com os procedimentos da maior parte da agências missionárias evangélicas - e em particular da Missão Novas Tribos do Brasil -  que buscam entrar nas Terras Indigenas, alegando que irão contribuir com ações de saúde, atividades de educação, mas sempre considerando tais ações como secundárias em relação ao seu objetivo principal, que é a evangelização.

Desde sua indicação à presidência da Funai, sabe-se que Antônio Costa é pastor evangélico e que atuou durante alguns anos na Missão Evangélica Caiuá - hoje, uma das três instituições conveniadas da Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Justiça para prover a atenção à saúde indígena nas áreas indígenas. Há que se ponderar o quanto este trabalho missionário tem se convertido em esforços de garantir uma clientela para serviços essenciais que deveriam ser fornecidos pelo governo, nos parâmetros de um Estado laico. "Parceria", como disse Antônio Costa, é um eufemismo para terceirização de serviços básicos e ingerência de instituições religiosas em assuntos que deveriam envolver primordialmente diálogos com os coletivos indígenas.

E, novamente, seria importante um conhecimento mais aprofundado da secular experiência dos índios, nas suas relações com evangelizadores. Parece que o presidente da Funai não dimensiona a sólida recusa de tantos povos que, historicamente, foram assediados por evangelizadores que atuaram das mais diversas formas. Uma história que tem mais de 500 anos e que hoje, em muitos lugares, se conta através da retomada de rituais, de práticas religiosas próprias...Tal valorização das práticas e conhecimentos próprios, por parte de muitas comunidades indígenas, indica que a adesão ao cristianismo não é necessariamente uma etapa rumo à "civilização" e que, tampouco, "conhecer a palavra de Deus" é uma atitude que provém simplesmente "da vontade dos índios".

Finalizamos replicando o comentário feito por Tiago Karai, atual Coordenador da Comissão Guarani Yvyrupa, em resposta à entrevista de Antônio Costa, em que diz: "É complicado que alguém que representa o órgão indigenista não tenha um mínimo conhecimento dos povos indígenas" (em reportagem da BBC de 07/04/2017, intitulada: "'Como paramos no tempo se há 500 anos lutamos por nossas terras?': índios criticam chefe da Funai", disponível em:http://www.bbc.com/portuguese/brasil-39524124). Além de equivocadas, consideramos a postura e as falas do presidente da Funai verdadeiros ultrajes e ofensas aos povos indígenas e aos seus direitos.