O CEstA subscreve a carta enviada pela FFLCH para ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), posicionando-se contra os Projetos de Lei 490 e 2903, bem como a tese do Marco Temporal, todos eles representando uma ameaça sem precedentes aos direitos e à existência dos povos indígenas no Brasil:
São Paulo, 1º de junho de 2023.
Vimos por meio desta carta manifestar nossa profunda preocupação referente à recente aprovação pela Câmara dos Deputados do PL 490, que instaura o marco temporal para a demarcação de terras indígenas e afrouxa diversos direitos constitucionais dos povos originários, comprometendo seriamente as suas condições de existência, a preservação do meio ambiente e, desta forma, o futuro de toda a humanidade. A referida aprovação escancara o interesse de setores retrógrados da sociedade brasileira que não conseguem compreender a associação entre produção econômica, preservação ambiental e garantia de direitos humanos arduamente conquistados com o estabelecimento da constituinte de 1988. O PL 490, como é sabido, viola de maneira direta o processo legislativo, de acordo com manifestação do próprio STF:
“Como a cultura integra a personalidade humana e suas múltiplas manifestações compõem o patrimônio nacional dos brasileiros (CF/88, arts. 215 e 216), parece plenamente justificada a inclusão do direito dos índios à terra entre os direitos fundamentais tutelados pelo art. 60, § 4º, IV, da Constituição.”[1].
Uma nota técnico-jurídica elaborada pelo Instituto Socioambiental (ISA) observa, ademais, as seguintes inconstitucionalidades flagrantes:
"O Artigo 4º, §§ 2º, 3º e 4º viola o artigo 5º, LV da Constituição, ao cercear o contraditório e a ampla defesa dos indígenas e afronta artigo 231, que resguarda os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. O artigo também é ilegal por violar o artigo 369 do Código de Processo Civil (CPC), que prevê que “As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz”.[2]
O PL 490 representa uma afronta à história brasileira e ao genocídio das populações indígenas, sistematicamente violentadas desde o início do processo colonial. A exigência de comprovação de ocupação de terras no ano de 1988 para que se faça jus aos seus direitos é um escárnio, haja vista que, via de regra, tais populações foram expulsas dos territórios originários que então pleiteiam através de processos demarcatórios. O referido documento do Instituto Socioambiental, mais uma vez, evidencia o absurdo da proposta aprovada pela Câmara dos Deputados:
"Trocando em miúdos, os indígenas teriam que provar a existência de conflito pela terra até 5/10/88, o que se materializaria por intermédio de “circunstâncias de fato” ou por meio de uma ação possessória judicializada. É preciso destacar que até a Constituição Federal de 1988 os indígenas eram tutelados pelo estado e sequer tinham legitimidade para a propositura de ações judiciais."
Há que se ressaltar, também, as diversas consequências catastróficas do PL, tais como a liberação do garimpo em terras indígenas, cujos efeitos devastadores são conhecidos pela opinião pública e têm colocado seriamente em risco não apenas a sobrevida de populações indígenas (como no caso recente do genocídio do povo Yanomami) mas, também, de toda a população amazônica e demais regiões vulneráveis. Ademais, não é apenas ao garimpo que as terras indígenas estariam expostas, mas sim a quaisquer interesses econômicos que passariam, então, a atropelar o direito constitucional do usufruto exclusivo dos povos originários. Não parece, de fato, que o PL esteja preocupado com condições excepcionais nas quais tal usufruto possa vir a ser eventualmente mitigado pelo interesse público, mas sim com o descontrole jurídico que terminaria por estimular o processo genocida que testemunhamos ao longo dos séculos.
Gostaríamos de ressaltar que, graças à Carta Magna de 1988, os povos indígenas tiveram um crescimento demográfico expressivo, passando de sua quase extinção nas primeiras décadas do século XX para uma população de mais de um milhão e meio de pessoas no ano corrente. Essa população é composta por povos em isolamento voluntário (isto é, por coletivos que decidiram viver como seus antepassados justamente para escapar da violência experimentada nas fronteiras carcomidas de seus territórios) e por outros tantos que já têm experiência de contato com a sociedade envolvente, mas que nem por isso perderam suas línguas, suas formas de pensamento, seus conhecimentos estéticos e científicos, todos eles extremamente originais e relevantes para o presente e para o futuro de uma humanidade compartilhada. As sociedades indígenas são compostas por mulheres e crianças que não precisam testemunhar novos ciclos de violência contra suas vidas, o que infelizmente já vem acontecendo em diversos contextos (como entre os Yanomami, entre os Guarani e os povos da Terra Indígena Vale do Javari, entre outros casos), agravados pelos desmandos do último governo.
A existência de povos indígenas e, mais do que ela, a garantia de sua dignidade, nunca foi um empecilho para o desenvolvimento econômico ou para a proteção territorial do país. Diversos estudos mostram que o Brasil possui área suficiente para o agronegócio sem que seja necessário o seu avanço para terras indígenas; mostram, ademais, que muitas das terras à disposição se tornam improdutivas pelas próprias formas deletérias e atrasadas de expansão da pecuária, na contramão de formas de produção mais avançadas que são, justamente, as demandadas pelos mercados internacionais das quais a economia brasileira é dependente[3]. A Câmara dos Deputados, como se não bastasse, vai na contramão dos conflitos climáticos e de suas severas consequências sociais, políticas e econômicas que já começam a demonstrar seus efeitos no Brasil e no mundo.
Os povos indígenas têm um papel central na resposta e no preparo para tal desafio civilizatório, não apenas por comprovadamente protegerem florestas com mais sucesso do que qualquer outra iniciativa institucional, mas, também, por possuírem o conhecimento necessário para contornar os efeitos devastadores de uma economia exploratória que, no entanto, até aqui os vitimou. Esperamos que as razões acima expostas, entre outras tantas que certamente são do conhecimento de V. Exa., sejam suficientes para reflexão sobre o grave retrocesso histórico, a injustiça revoltante e a incalculável ameaça à vida que o PL 490 representa.
Sem mais para o momento, aproveitamos o ensejo para renovar nossos protestos de estima e elevada consideração.
Atenciosamente,
Prof. Dr. Paulo Martins
Diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP)
Profa. Dra. Marta Rosa Amoroso
Chefa do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (DA/FFLCH/USP)
Prof. Dr. Renato Sztutman
Coordenador do Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo (CESTA/USP)
Profa. Dra. Antonia Terra de Calazans Fernandes
Chefa do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (DA/FFLCH/USP)
[1] Supremo Tribunal Federal. MS n.º 32.262 MC/DF. Decisão Monocrática: Ministro Roberto Barroso. DJe: 24.09.2013
[2] Instituto Socioambiental, "Nota Técnico-Jurídica sobre o substitutivo ao PL N.º 490/2007, aprovado na Comissão de Constituição de Justiça e de Cidadania (CCJ), da Câmara dos Deputados, em 23/06/2021". (https://www.socioambiental.org/sites/default/files/noticias-e-posts/202…, acesso em 01/06/2023)
[3] Ver por exemplo Salles, João Moreira. Arrabalde - em busca da Amazônia. São Paulo, Companhia das Letras, 2022, pp. 92 ss; Nobre, Carlos et al. (Eds.). Amazonian deforestation and climate (water science). Wiley, 1996.
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