Pedro Agostinho e os povos indígenas no Brasil

 

Faleceu no dia 10 de novembro de 2022, na cidade de Salvador (BA), o antropólogo, historiador e arqueólogo Pedro Agostinho. O Centro de Estudos Ameríndios manifesta a sua solidariedade e pesar à Professora Maria Rosario Gonçalves de Carvalho e, em sua pessoa, a toda a equipe e pesquisadores oriundos do Programa Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro (PINEB), da Universidade Federal da Bahia, reforçando a importância da contribuição de Pedro Agostinho para a antropologia e para o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas.

Pedro Agostinho se formou em história na então Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (hoje Universidade Federal Fluminense) e realizou o seu mestrado na Universidade de Brasília sob a orientação de Eduardo Galvão. A sua pesquisa de mestrado foi a primeira etnografia sistemática do ritual pan-xinguano do quarup, a partir de cuidadosa pesquisa de campo realizada entre o povo Kamayurá, que vive no Parque Indígena do Xingu. O livro resultante dessa pesquisa (Kwarìp: mito e ritual no Alto Xingu) constituiu, durante décadas, a principal referência sobre este ritual - que se tornou um ícone das culturas do Alto Xingu - e da mitologia e concepções cosmológicas a ele associadas. Durante sua pesquisa de campo, seguiu um um programa fiel à formação boasiana que recebeu de seu orientador, formando uma importante coleção etnográfica, realizando sondagens arqueológicas e, junto de sua esposa, a linguista histórica Rosa Virgínia Mattos e Silva, observando as sutilezas da apropriação da língua portuguesa e da difícil tradução realizada por seus interlocutores kamayurá, falantes de língua da família tupi-guarani, nas atividades de pesquisa.

Deslocando-se junto de seu pai - o intelectual português exilado, Agostinho da Silva - em um périplo de contribuições para a ampliação do sistema universitário brasileiro, Pedro Agostinho cedo se aproximou de uma cena intelectual que procurou inovar as instituições públicas no período anterior ao regime militar. Na Bahia, ele acompanha a criação do Centro de Estudos Afro-Orientais na Universidade e a movimentação cultural soteropolitana. Em Brasília, participa do início da criação da UnB, tendo apresentado a primeira dissertação de mestrado em antropologia dessa instituição, ainda antes da criação de um programa de pós-graduação. Ali, segue não apenas os cursos da etnologia indígena, mas também o grupo de estudos do filólogo Eudoro de Sousa, onde um grupo de estudantes que acompanha Agostinho da Silva em exílio da Bahia para Brasília realiza uma leitura cuidadosa das Mitológicas de Lévi-Strauss, que lhes propicia abordagens inovadoras em campo e no indigenismo. Entre os amigos de toda uma vida que participam deste grupo, estão Olympio Serra, Ordep Serra e Rafael de Menezes Bastos.

Também em Brasília, Pedro Agostinho acompanha as denúncias e discussões sobre os crimes e violações de direitos cometidos pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), o desenvolvimento de propostas indigenistas no contexto da criação do Parque do Xingu, e a criação da Fundação Nacional do Índio em 1967. Em 1968, ele organiza a fundação de uma organização independente de estudos indigenistas do Brasil, o Centro Brasileiro de Estudos Indígenas (CBEI), experiência de curta duração, mas que viabilizou a primeira viagem a campo do etnomusicólogo Rafael de Menezes Bastos, em 1969. Em 1971, Pedro acompanha clandestinamente os colegas Darcy Ribeiro e Sílvio Coelho dos Santos ao Encontro de Barbados, participando assim (embora impedido de assiná-la) da elaboração da Declaração de Barbados - um marco do posicionamento crítico de antropólogos, e do compromisso com o movimento indígena que se consolidava em toda a América Latina.

Foi também em 1971 que Pedro Agostinho fundou um dos mais antigos laboratórios de estudos amerindianistas em atividade, o Programa Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro (PINEB), da Universidade Federal da Bahia. O PINEB é, desde então, uma referência como espaço integrado de formação e pesquisa etnográfica e histórica, animando continuamente um corpo de pesquisadores cidadãos, aptos para contribuir rigorosamente com o reconhecimento da presença indígena no Nordeste do Brasil, bem como para o amparo técnico e científico de políticas públicas voltadas a povos indígenas e comunidades tradicionais. No PINEB, Pedro se dedicou sobretudo ao acompanhamento da pesquisa de gerações de alunos em nível de graduação e pós-graduação, e à consolidação de um projeto de transcrição diplomática da totalidade da documentação histórica concernente a povos indígenas disponível no Estado da Bahia - o Fundo de Documentação Histórica Manuscrita sobre os Índios na Bahia (FUNDOCIN). O FUNDOCIN, mais conhecido dos estudiosos da história indígena, é uma contribuição pioneira na disponibilização de documentação pública para comunidades cuja presença viva e cuja história são sistematicamente apagadas e negadas, muitas vezes pelo próprio Estado.

Durante a redemocratização, Pedro Agostinho é membro da direção da Associação Brasileira de Antropologia (1984-1986) e, junto ao grupo formado no PINEB, articula a Seção Bahia da Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAÍ), participando dos sucessivos debates jurídicos relativos à emancipação dos povos indígenas, e das discussões conceituais que resultarão no novo marco dos direitos indígenas na Constituição de 1988. Ele coordena a construção dos artigos relativos aos povos indígenas na Constituição do Estado da Bahia, numa articulação construída junto aos movimentos sociais indígenas e populares, abrigada no Museu de Arqueologia e Etnologia, no Centro Histórico de Salvador, de que foi o diretor em duas ocasiões.

No Museu de Arqueologia e Etnologia da UFBA, Pedro Agostinho contribuiu institucionalmente para a dinamização de pesquisas arqueológicas no Estado da Bahia e para a formação de arqueólogos especializados nessa região. Além disso, ele procurou animar os estudos de embarcações históricas, sobre as quais publicou o livro Embarcações do Recôncavo, tendo estruturado também a proposta para um Museu Naval no Nordeste e um programa de pesquisas para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, infelizmente, jamais concretizados em toda sua extensão. Iniciou ainda um doutorado no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo realizado extensa pesquisa sobre a Festa do Divino e sobre regimes coletivos de uso da terra em comunidades rurais de Portugal. Nos anos 1990 e 2000 se manteve engajado continuamente na construção da Nova República, na consolidação das muitas frentes de pesquisa coletiva e de institucionalização que animou e de que participou.

Na convivência com seus colegas, amigos e discípulos de toda uma vida, a comunidade antropológica brasileira encontra sempre a marca de sua disponibilidade, generosidade e engajamento cidadãos. Nos frutos do compromisso de Pedro Agostinho e do PINEB com os povos indígenas, particularmente o reconhecimento consolidado dos muitos povos indígenas que vivem no Nordeste do Brasil, ela encontra um exemplo de atitude e de consistência com o qual aprendemos, e que esperamos honrar num presente desafiador.

Luísa Valentini

Centro de Estudos Ameríndios